A invenção do tempo

Aquele que é conhecido como o primeiro relógio mecânico moderno está situado na catedral inglesa de Norwich datada de 1321, há quase 700 anos deu-se a partida para que a vida moderna fosse medida em “tictac”.

Alguns ossos achados na África a cerca de 50.000 anos ornados com pequenos cortes que, a primeira vista parecem ornamentais, foram interpretados como uma tentativa de elaboração de um calendário baseado nas fases lunares.

Os relógios solares, também chamados de relógios naturais, separavam e algumas vezes uniam civilizações, mundos a parte funcionavam ao compasso que o sol e a lua lhes ditavam. Não havia fusos horários e instrumentos capazes de medir com precisão o tempo para orientar os navegadores, tudo devia ser seriamente confiado às estrelas e ao sol.

A invenção do relógio mecânico embaixo do nublado céu europeu dos séculos XIII e XIV mudou para sempre o conceito de tempo da humanidade. Nenhuma outra forma de descrever o tempo caiu tão bem para a humanidade como a do relógio mecânico. Uma bela e poética descrição do tempo é um trecho do trabalho do físico brasileiro Luis Alberto Oliveira, “O que o relógio mecânico faz é consolidar uma transformação extraordinária. Transforma durações em distâncias. É uma máquina de transformar duração, tempo, em distância, espaço. Então, a cada movimento, a cada posição dos ponteiros, somos informados de que estamos aqui, neste lugar, neste marco da estrada. Os marcos anteriores já passamos; os marcos a seguir vamos encontrar”.,

O tempo é de fato uma coisa engraçada, pois todos nós sabemos o que é, mas ninguém é capaz de explicá-lo imparcialmente. Passado, presente e futuro são definidos por nós como um minuto atrás, nesta hora ou, daqui a meia hora, todos os conceitos da medição do tempo, uma nova dimensão criada pelo relógio mecânico.

O primeiro relógio mecânico foi projetado para medir as horas do dia e soar seu sino seis vezes ao dia convocando os monges as suas orações. As pessoas acreditavam que a oração coordenada e simultânea reforçaria suas bênçãos e, logo, impontualidade passou a ser pecado. Passou o relógio mecânico a ser indispensável à sociedade, saiu das igrejas e monastérios para as cidades. A burguesia encarava como virtude a pontualidade, a precisão, a confiabilidade e a disciplina baseadas no sonidos dos sinos e nas agulhas do relógio. Em muitas cidades estes sinais sonoros indicavam os turnos de determinada atividades profissionais. Em Bruxelas havia uma batida para os tapeceiros e outra para os tecelões. O tempo saiu de um conceito filosófico baseado no cristianismo e passou para um conceito quantitativo, com isso foi possível quantificar um salário por horas trabalhadas e, então, precificação para bens de uma mesma natureza, mas que demandavam de mais ou menos tempo de mão-de-obra. Render mais por minuto passou a ser a virtude das classes.

Tão rápido como a peste negra, os relógios conquistaram a vida comercial da Europa e mudaram o mundo, ainda que em muitas civilizações houvesse resistência, por exemplo, na China, que possuía um sistema de medição do tempo astronômico, os relógios mecânicos até o século XVIII não passavam de brinquedos mecânicos da elite que nunca os usava para seu fim.

No século XVI o avanço trazido por armeiros na miniaturização dos movimentos mecânicos de relógio fez surgir uma nova categoria, os relógios portáteis. No primeiro século de sua invenção os relógios portáteis eram fabricados com mecanismos de ferro e construídos por armeiros que já possuíam a habilidade de fabricar e manipular pequenas peças de metal. Neste mesmo século teve início à reforma protestante, novas religiões surgiram na Europa, muitos conceitos e ditames do cristianismo foram flexibilizados. A grande maioria da burguesia intimamente ligada ao desenho do tempo eram na época protestantes, pessoas que estavam à frente das regras e crenças antigas da igreja. Não é a toa que o mais antigo relógio portátil conhecido, pertencente hoje ao Walters ArtMuseum e datado de 1530, tenha pertencido a Philipp Melanchthon, reformista alemão.

Da mesma forma, cerca de 80% dos relojoeiros da Europa nos séculos seguintes eram protestantes de diversas denominações, como calvinistas e hugonotes. Segundo o sociólogo americano David Landes, a ética protestante de trabalho como base do capitalismo europeu foi fundada no elemento quantitativo do tempo. 

O mais antigo relógio portátil conhecido: manufaturado para o reformista Philip Melanchton em 1530

O tempo quantificado foi um conceito controverso por muitos séculos e ainda é em algumas culturas. O escritor suíço Georg Brunold relata que certa vez um egípcio que é seu amigo disse para ele: “para vocês na Europa o som do tempo é tic-tac, tic-tac, para nós é hmmmmmmm”.

Talvez você esteja pensando que essa afirmação tenha ocorrido há séculos atrás, mas se passou ainda no século XX. Brunold nasceu em 1953 e demonstra claramente a diferença cultural do tempo. O mesmo trabalho já citado de Luiz Alberto Oliveira fala sobre o conceito de passado, presente e futuro, para os Navajos, o agora para eles é um ciclo da lua, 28 dias, tudo o que ocorre neste período acontece agora. Você percebe o quanto absurda lhe parece essa concepção? Da mesma forma, nossa concepção pode parecer absurda a eles.

Antes do relógio mecânico, viajar e coordenar acontecimentos com outras locais do planeta não era uma tarefa fácil, a duração dos dias e horário em que começavam em relação a um e outro lugar eram diferentes, moldando os hábitos daquele lugar.

Mesmo no século XVI com a invenção do relógio portátil se fazia necessária uma tabela de conversões para determinar a hora em outros lugares. Anos mais tarde, no século XIX essas tabelas foram base para a criação dos fusos horários e com isso foi muito mais fácil lidar com essa diversidade.

O relógio mecânico submeteu o mundo a um novo regime comportamental, nos pulsos, nos bolsos, nas mesas, nas paredes, nos painéis dos carros, nos celulares, nos eletrodomésticos, em anéis, em pingentes, os relógios estão por todos os lugares. Foram eles que abriram essa nova dimensão para o ser humano, nascemos e morremos em uma hora exata e em cada parte desse intervalo é possível marcar um acontecimento com uma hora. Hoje computadores marcam milionésimos de segundo de modo que nada deixe de ter registrado o tempo exato em que ocorreu. Depois que a primeira carga foi dada naquele relógio inglês em 1321 tudo o que se sucedeu no universo teve um “quando”.

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